O
filme “Escritores da Liberdade” e a função do pensamento
em
Hannah Arendt
por Raymundo
de Lima
... Eu
tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver
em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas
pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!... Martin
Luther King –
fragmento do memorável discurso "I
Have a Dream", de
28/08/1963.
Todos
somos atores de nossa vida, mas nem sempre podemos ter sua autoria. O
pensar [e o escrever] favorece a autoria da existência. Dulce
Critelli, 2006.
Há
muitos filmes americanos sobre escola, mas não como "Escritores
da Liberdade". (Freedom
Writers,
EUA, 2007). Porque é o único filme dessa categoria que incentiva os
alunos a lerem literatura, ponto de partida para testar a vocação
de cada um para escrever dede um diário sobre o cotidiano trágico
de suas vidas até uma poesia hip
hop ou
um livro de ficção. O valor desse filme também está na ousadia da
linguagem cinematográfica mostrando os problemas
psico-sócio-culturais que atingem a escola contemporânea; também
porque ele dá visibilidade à diversidade dos grupos, com seu rígido
código de honra, cada um no seu território, o narcisismo da recusa
e da intolerância para com “os outros”, o boicote às aulas, a
prontidão para aumentar os índices de violência entre os jovens e
transformar a escola no seu avesso, isto é, uma comunidade bem
próxima da barbárie, o que de fato vai acontecer em 1992, em Los
Angeles, EUA.
O
filme é baseado na história real de Erin (interpretada por Hilary
Swank), uma professora novata interessada em
lecionar Língua Inglesa e Literatura para uma turma de adolescentes
resistentes ao ensino convencional; alguns estão ali cumprindo pena
judicial, e todos são reféns das gangues avessas ao convívio
pacífico com os diferentes.
Como
em outros filmes sobre turmas problemáticas, a professora Erin toma
sua tarefa como um grande desafio: educar e civilizar aquela turma
esquizofrênizada e estigmatizada como “os sem-futuro” pelos
demais professores. Percebe que seu trabalho deve ir para além da
sala de aula, por exemplo, visitando o museu do holocausto,
possibilitando aos jovens saber os efeitos traumáticos da ideologia
da “grande gangue” nazista, que provocou a 2ª. Guerra Mundial e
o holocausto, e também reconhecer as semelhanças com suas “pequenas
gangues” da escola. Nota: a palavra “holocausto”,
referida no filme, é usada mais pelos judeus. E, “genocídio” é
o termo cunhado pelo Direito Internacional do pós Guerra. Ambas
significam o ato racional de eliminação de seres humanos em escala
inimaginável (conferir nota de rodapé).
O
método da jovem professora consistiu
em entregar para cada aluno um caderno para que escrevessem,
diariamente, sobre aspectos de suas próprias vidas, desde conflitos
internos até problemas familiares e sociais. Também, instigou-os a
ler livros como "O Diário de Anne Frank" com o propósito
de despertar alguma identificação e empatia, ainda que os
personagens vivam em épocas diferentes; a partir de eventuais
encontros imaginários cada aluno poderia desenvolver uma atitude
especial de tolerância para com o “outro”. Na vida real, os
diários foram reunidos em um livro publicado nos Estados Unidos, em
1999, e terminaram inspirando o diretor Richard
LaGravenese para
fazer esse filme.
Formada
em Direito, Erin se torna professora, desagradando seu pai e marido.
No início, ela demonstra ingenuidade, timidez, curiosidade e
determinação; sua vocação para o magistério vai se construindo
conforme os desafios que ela encontra entre os alunos e ao lidar com
a burocracia e o conservadorismo dos funcionários do sistema
pedagógico da escola. Os judeus nova-iorquinos diriam que o
diferencial de Erin é ela ter “chutzpah”: ousadia,
garra, determinação, toma iniciativa, ir-à-luta.
Os diversos obstáculos próprios de qualquer sistema escolar faz com
que ela se sinta desafiada a fazer algo-mais.
Seu
estilo não é teatral, tal como os professores protagonistas dos
filmes “O
triunfo”, “Sociedade
dos poetas mortos”, “Escola
da vida”.
Também não é autoritária como“Meu
mestre, minha vida”,
e nem experimentalista como é o professor Ross, do filme “A
onda”.
Seu estilo pedagógico está para o ensaísmo apaixonado, romântico,
humanista, mas sem perder de vista a racionalidade do propósito
educativo. Primeiro, ela tenta “dar aula” segundo manda o modelo
tradicional, que não funciona com alunos indiferentes ao propósito
da escola eminentemente
ensinante.
Uma aluna questiona pra que serve aprender tal conteúdo abstrato
considerado inútil para melhorar sua vida real; outro dirá que o
fato de ela ser professora “branca” não é suficiente para ele
respeitá-la. Cabe à professora ter argumentos consistentes que
respondam essas questões imprescindíveis na escola contemporânea.
No segundo momento, Erin faz o reconhecimento dos grupos de iguais
(narcísicos), e, obviamente sente empatia com os excluídos.
Terceiro, devolve aos alunos esse reconhecimento com um pensamento
crítico, fazendo-os reconhecer,
sentir e pensar sobre
a realidade criada por eles próprios. Quarto, não os aceita na
condição de vítimas reativas, e cobra-lhes responsabilidade por
suas escolhas e seus atos de exclusão para com os diferentes. Ou
seja, sua ação pedagógica é inovadora porque desperta a motivação
dos alunos para expressar seus sentimentos, ler, pensar, escrever, e
mudar a partir do reconhecimento como sujeito-de-sua-história.
Na
concepção de Hannah Arendt,
duas causas podem ter relação profunda com a crise da educação em
nossa época: a
incapacidade de a escola levar os alunos para pensar e
a perda
da autoridade dos
pais e professores. Ambas fazem com que as crianças e adolescentes
fiquem sujeitos à tirania de uma maioria qualquer (grupo social,
tribos, gangs) e de um líder carismático ou populista. Portanto, o
ato educativo de Erin é ao mesmo tempo político e ético, porque
visa transformar alunos “não-pensantes”, “incivilizados”,
“não-humanizados”, em seres humanos que podem exercitar
o pensamento
crítico sobre
a realidade e seus atos; suas propostas de dinâmicas com os grupos
leva-os a rememorar situações e rever suas posições na história
de cada um, podendo até criar em cada aluno uma nova ética que
melhor orienta seus gestos e palavras para evitar magoar o seu
próximo. As dinâmicas e debates em sala de aula desmarcaram o
recorrente discurso vitimista desses grupos, que tendem ao comodismo
da sua desgraça, e ao mesmo tempo projeta no outro a
responsabilidade pela sua própria irresponsabilidade ou fracasso
como sujeito-cidadão no meio social. É preciso que cada qual se
responsabilize e se comprometa “fazer sua parte”, ou como diz a
velhinha que abrigou Anne Frank: “fazer a coisa certa” ou ética,
como uma pessoa comum, anônima, e representante do que é ser
civilizado.
Uma
educação que não exercita o ato
de pensar,
com todos os seus riscos, além da própria ausência de pensamento,
tem como efeito o não comprometimento,
o não
tomar decisões, ou não
se responsabilizar por elas. “A
tarefa fundamental do pensar é descongelar as definições que vão
sendo produzidas, inclusive pelo conhecimento e pela compreensão e
que vão sendo cristalizados na história. A tarefa do pensar é
abrir o que os conceitos sintetizam, é permitir que aquilo que ficou
preso nos limites da sua própria definição seja liberado. É
livrar o sentido e o significado dos acontecimentos e das coisas da
camisa-de-força dos conceitos”
(CRITELLI, 2006, p. 80).
É
preciso, portanto, criar dispositivos – como ler, escrever, falar
elaborado – que “operem
como obstáculo para que aqueles que não se decidiram a ser maus não
cometam maldades” (CORREIA,
A. 2006, p. 50). Conforme diz Arendt: “os
maiores malfeitores são aqueles que não se lembram porque nunca
pensaram na questão, e, sem lembrança, nada consegue
detê-los [...]. O
maior mal não é radical, mas possui raízes, e, por não ter
raízes, não tem limitações, pode chegar a extremos impensáveis e
dominar o mundo todo”,
como foi a trágica experiência dos regimes totalitários, o
nazi-fascismo e o stalinismo.
Para
alguns, é insuficiente o(a) professor(a) apenas “fazer sua parte”,
visto existir um mundo para além dos limites de sua sala de aula.
Mas, a lição da professora do filme está em “fazer-bem-sua-parte”
exatamente no ponto nevrálgico e temporal que é a educação:
ser um ato civilizatório entre
o passado
e o futuro.
Diz ela: “A
tarefa da educação é justamente a de apresentar o mundo às
gerações do presente, tentando fazê-las conscientes de que
comparecem a um mundo que é o lar comum de múltiplas gerações
humanas. Ao
conscientizá-los do mundo a que vieram, estas deverão compreender a
importância de sua relação e ligação com as outras gerações,
passadas e vindouras. Tal
relação se dará, primeiro, no sentido de preservar o tesouro das
gerações passadas, isto é, no sentido de a geração do presente
tomar o cuidado de trazer a esse mundo sua novidade sem que isso
implique a alteração, até o irreconhecimento, do próprio mundo,
da construção coletiva do passado” (apud
FRANCISCO, 2006, p.35).
Tal
posicionamento pedagógico-político-ético da função docente deve
ser marcado
pela sua autoridade, sensibilidade, e senso de inovação, que ao ser
testado na realidade cotidiana da escola costuma pagar um preço em
forma de resistências, incompreensões e críticas maldosas. Assim
posicionado nesse tripé é que o docente pode tanto se defender dos
ataques de fora como resistir às frustrações advindas do seu
próprio trabalho. Também, a partir desse estilo ela pode melhor se
preparar para evitar cair no criticismo raso dirigido ao sistema,
como forma única de luta; ou seja, a experiência tem demonstrado
que muitos na escola e na universidade usam de verbosidade sem ação,
não se comprometem de corpo e alma testando táticas inovadas de
lutas (no sentido da esquerda política) visando melhorar a qualidade
do ensino; outros ficam esperando que o governo ou dono de escola
tomem iniciativas, ou autorizem (o)a professor(a) fazer algo inovador
no seu trabalho docente no sentido de reverter o baixo rendimento dos
alunos, por exemplo.
Que
cada professor(a) faça diferença no seu ato de ensinar.
O ensino regular visa levar os alunos aprenderem os conteúdos
programados pelos currículos. Contudo, não se pode ensinar sem
incluir também uma mudança educativa. Um ensino sem educação
para o
pensar é
vazio de sentido prático e existencial. Uma educação sem
aprendizagem dos conteúdos também é vazia e tende a degenerar em
retórica moral e emocional. Ensinar e educar implicam em
responsabilidades: pedagógica, política e moral, dentro e fora da
escola; implica, ainda, na responsabilidade do coletivo do
professorado de civilizar a nova geração que irá povoar o mundo.
No
dizer de Arendt (1989) “A educação é,
também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante
para expulsá-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de
suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e
imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência
para a tarefa de renovar um mundo comum”.
Nós,
professores e professoras, devemos assistir ao filme “Escritores da
Liberdade” por várias razões: para que possamos inovar o ato de
ensinar adequado à realidade cultural dos alunos; para que, além de
ensinar, também possamos adotar uma atitude de pesquisa-ação com
os grupos que se formam em sala de aula e na escola, quase sempre
atraídos pela semelhança formando grupos narcísicos, cujo sintoma
visível é a intolerância para com os demais; para que aprendamos a
acolher e contextualizar as situações de vida dos alunos com as de
outras vidas relatadas pela história da humanidade – que, através
de um diário ou redação qualquer eles aprendam a significar suas
histórias com outras histórias; para que os professores do nosso
Brasil se empenhem mais-e-mais em
ler literatura, porque só podemos cobrar dos alunos esse hábito se
nós também nos habituamos a ler, isto é, se ler e
compreender já fazem parte de
nossa virtude pessoal.
(aquele que lê e compreende tem maior probabilidade de escrever suas
próprias narrativas); para que os professores façam autocrítica
sobre o quantum de
paixão (ou libido) têm pelo trabalho com os alunos não deve
necessariamente implicar a sua desatenção (ou desapaixonamento)
para com os seus próximos: marido, esposa, filhos, etc.
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